TEMPOS DE DADOS KRIPTONITA E O MARKETING

E se, em vez fazer pesquisas e mapear comportamentos pudéssemos ler a mente do consumidor? Caso você queira, poderá em breve. Mas deve fazer isso? 

Em 2019, foi divulgado que o Facebook está patrocinando o desenvolvimento de tecnologia para ler mentes. A notícia causou comoção por causa do tema do momento: Privacidade. O projeto leva a discussão ao seu limite. Seremos capaz de proteger a fronteira do que temos de mais íntimo – os nossos pensamentos? 

Estudos e experimentos sobre interfaces cérebro-máquina não são novidade. A neurotecnologia avança rápido. É previsto que, em alguns anos, os nossos cérebros estarão conectados a ‘nuvem’. A Universidade da Califórnia, responsável pelo projeto em questão, já apresentou um algoritmo que consegue converter em texto, em tempo real, as palavras pensadas por um voluntário. 

A futurista e pesquisadora Amy Webb, do Future Today Institute, declarou no último SXSW (o ‘hypado’ evento anual de tecnologia, música e cinema que acontece em Austin, Texas): “O entendemos como privacidade não cabe mais no mundo atual e é necessária uma ressignificação.”. Muitas pedras vão rolar, sem chances de criar limo. Mas, os neuroeticistas alertam para a urgência de construir proteções legais que garantam a nossa privacidade mental. 

Enquanto isso, a realidade brasileira, sob a insígnia da Privacidade, é a Lei Geral de Proteção ao Dados, sancionada em 2018. 

O prazo para empresas de todos os portes e órgãos públicos estarem em conformidade com a LGPD era agosto de 2020, quando a lei entraria em vigor.  Porém, após discussões (leia-se “vai-e-vem”), a LGPD passou a vigorar em 18 de setembro de 2020 e o prazo para aplicação de sanções foi modificado para 1 de agosto de 2021, por conta do cenário desafiador de uma economia pós-pandemia, quando muitas empresas deverão concentrar forças e investimentos em sobreviver e recuperar-se. E também, é claro, para que a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), órgão fiscalizador e regulador, possa ser estruturar para operar. 

Mesmo sendo um alívio para tantos que estavam atrasados em tratar o assunto, ou nem mesmo tinham se dado conta da LGPD, não há motivo para usar emojis sorridentes: privacidade e proteção de dados pessoais, em um mundo movido a dados, devem ser tratados como prioridade. Alguns abordam o cuidado com ambos como diferencial de marca. 

E qual os impacto da LGPD para o marketing?

Estamos acostumados com o discurso ‘o consumidor é o centro’, onde conhecer bem seus desejos, necessidades e comportamento é a essência do negócio e o que permite criar uma experiência diferenciada e personalizada na comunicação, no atendimento e no relacionamento. Além disso, os empreendimentos bem-sucedidos atualmente são aqueles donos da demanda, ou seja, a base de clientes é o ativo mais valioso. Os exemplos citados a exaustão são AirBnb, e Uber. 

As pessoas como ativos… Nas discussões sobre privacidade é comum ouvir que dados são pessoas. E de quem são os dados? Uma lógica rasa pode nos induzir ao palpite de que os dados são desses empreendimentos que os coletam, tratam, armazém e usam. A LGPD estabelece logo de cara que os dados são das pessoas. E que as pessoas, como donas do seus próprios dados (olha que coisa…), têm o direito de saber quais dados estão sendo coletados e como serão usados, dar o consentimento ou não, ter acesso a eles quando quiser, retificá-los, eliminá-los e também requisitar portabilidade desses dados para uso de outra empresa ou marca. 

E lembra da famosa frase do livro O Pequeno Príncipe – você é responsável por tudo que cativa? Pois é… a empresa é responsável por todos os dados confiados pelos clientes. Esse tesouro traz uma maldição: o desafio de protegê-los contra as ameaças cibernéticas que se proliferam exponencialmente e tiram o sono do especialistas em segurança de dados. 

Vazamento, sequestro e roubo de dados, tratados como incidentes na LGPD, causarão mais do que danos à reputação das empresas, obrigadas a notificar a ocorrência. O prejuízo também poderá ser financeiro, com aplicação de multa de até 2% do faturamento (limitado a R$ 50 milhões) e, em alguns casos, a paralisação do negócio, por bloqueio ou eliminação dos dados. Nesse texto, tratamos apenas de dados de consumidor (adequação à mídia e ao público, não é Thiago e Ênio Carvalho?), mas vale citar que a lei se aplica a dados de funcionários e fornecedores. Então, deixando de lado, por ora, os departamentos jurídicos, TI e RH, como fica o Marketing, tão data driven (se feito como se deve, é claro)? Bem… serão tempos interessantes. Como sempre.

A maior parte dos consumidores já entendeu que tudo que é gratuito na verdade é pago com seus dados. Ao se tornar mais consciente do valor dessa moeda, pode ser mais exigente com o que recebe em troca. E isso é excelente para marcas que se preocupam em oferecer serviços e conteúdo de qualidade. Aliás, qualidade em vez de quantidade será a tônica desse momento – o marketing vai ter como ponto de partida uma base composta por pessoas que consentiram a coleta de seus dados de forma clara e podem cancelar o consentimento facilmente. Ou seja, o engajamento, perseguido como métrica fundamental, deve crescer.

Nesse sentido, consequentemente veremos o crescimento do investimento de recursos e esforços em canais privados como Whatsapp, E-mail, Telegram, SMS (sim, ele está vivo, operante e pronto para ser conhecido por RCS – Rich Communication Services -, mas isso é assunto para outro artigo).

Até aqui podemos perceber que a LGPD deve impulsionar a criação de conteúdo de valor e mexer com o mix de pontos de contato, além de alavancar o cuidado com o relacionamento com os clientes. Outra vertente que terá o seu lugar ao sol é Branding, pois é natural que as pessoas confiem os seus valiosos dados a marcas com as quais está familiarizada e confia. 

Você deve estar ansioso para saber como as mídias sociais, buscadores e afins vão se sair em um ambiente pós-farra de coleta de dados. E eles vão bem, obrigados previamente  a conformidade com a GDPR (General Data Protection Regulation), implementada em 2018, pela União Européia. Vida que segue… Na linha de “O combinado não é caro”, as segmentações que amamos serão possíveis mediante informação e autorização da coleta dos dados e a que se destinam. Transparência é o nome do jogo.

A LGPD não é a única sigla que entrará no nosso vocabulário mercadológico já cheio de siglas, em inglês. A começar por CMP, que significa Consent Management Platform. Ou Plataforma de Gestão de Consentimento, em português. Essa é uma ferramenta que faz parte do território de um segmento de negócio que promete prosperar sob a influência da LGPD: as Privacy Techs. A gestão do consentimento e das tags de rastreamento é vital. E a escolha do prestador do serviço deve ser feita pelo DPO, sigla para Data Protection Officers, o profissional que será responsável por mapear os dados que a empresa armazena e usa, adequar e manter tudo em conformidade com o estabelecido pela lei. Lembra do termo queridinho do mercado nos últimos anos, Big Data? Quem leu as letrinhas miúdas entendeu que, tratando-se de dados, só devemos colocar na boca o que dá para mastigar. Dentro do ‘big’ tinha realmente muita ‘data’ que não fazia sentido coletar, não era possível tratar, ou não traria benefícios significativos para o negócio. Com a LGPD, e as obrigações e responsabilidades com privacidade e segurança, é sensato pensar em Frugal Data (ok… criei agora o termo agora, não precisa pesquisar no Google) – antes de pensar em coletar qualquer dado, entender a utilidade e relevância. Afinal, o que o marketing acreditava ser um superpoder – a maior quantidade de dados possíveis do seu consumidor -, em tempos de esperada e necessária LGPD, pode ser pura kriptonita.

 

Ana Carolina Monteiro

Artigo originalmente publicado na revista Top of Mind, 25 anos – setembro, 2020.